Portugueses que estavam lá. Um actor, um médico, dois artistas plásticos. Três por acaso na cidade, o outro a viver lá. No meio da história, no momento zero de uma nova era, num cenário de filme catástrofe. Nove anos depois, aqueles dias ainda estremecem a voz.
O primeiro avião embate nas torres às 8.46 da manhã. Em Nova Iorque a fazer um curso no Lee Strasberg Institute e a residir num apartamento na rua 14, Ivo Canelas, 28 anos, está a dormir. Quando acorda, encontra na sala, a ver TV, a pessoa com quem divide a casa. "Vejo uma torre a arder. Estou cheio de sono e faço uma comparação parva com uma coisa que tinha acontecido na Rússia, na torre de uma televisão. E vem o segundo avião." Passam agora três minutos das nove. "Fui a correr ao terraço. Era um terceiro ou quarto andar, mas como era perto via-se tudo. Estava um dia lindo, muito claro, e o fumo ia todo para sul, para o lado do rio. Os telhados estavam cheios de gente a tirar fotos. Impressionante."
Á mesma hora, José Luís Barreto Guimarães, 34 anos, poeta e médico a fazer um estágio de cirurgia plástica reconstrutiva no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, acabou de acordar no seu T0 da rua 70 e tal e atende um telefonema de Portugal - "As pessoas começaram a ligar porque cá era hora do almoço e viram aquilo na TV - quanto se dá o embate do segundo avião. "Ver na televisão os aviões a bater cria uma sensação de inverosimilhança. Visto-me e saio para a rua. E aí passei do ver filme para o estar no filme. É uma experiência única. Tive claramente a noção de que aquele momento ia ser inscrito na história, que era uma coisa em grande. Senti estupefacção, fiquei atónito, e senti que o meu corpo físico, a minha pele, estava dentro daquele cenário: estar a descer a rua e ver homens, mulheres e crianças a correr na outra direcção, sentir o cheiro, o cogumelo lá ao fundo - era um cheiro a pó, pesado, era uma respiração difícil - e eu corria ao encontro de tentar ver qualquer coisa. Desci 10 quarteirões e depois vi que havia barreiras da polícia e por ser português, por não estar no meu elemento, senti que era melhor não tentar e desviei-me para o hospital." Com as cirurgias canceladas, os médicos ficam ali a ver TV até que alguém tem a ideia de se irem oferecer aos outros hospitais que estariam a receber feridos. Foram ao Cornell Medical Center, do outro lado da rua. "Havia imensos médicos mas poucos feridos. Houve uma incapacidade de ter uma noção real do desastre: falou-se de 10 mil vítimas e afinal foram duas mil e tal, o mayor Giuliani falou de três semanas para limpar os destroços e nem três anos chegaram. Mas no Cornell vi os piores queimados da minha vida. Bombeiros com mais de 90% do corpo queimado, sem hipóteses nenhumas. Foi uma angústia... Como médicos aprendemos a distanciar-nos. Mas aquelas pessoas tinham ido salvar outras. Há coisas que são tão dramáticas e tão sem solução, tão impressionantes que senti muito por elas."
Aquilo que até hoje guarda como cúmulo do horror é a imagem de pessoas a dar as mãos nas torres em chamas e a lançarem-se no vazio. Escreveu-o numa espécie - é o próprio que assim o qualifica - de "diário de guerra" intitulado O fim do Verão em Nova Iorque, mais tarde publicado na Grande Reportagem e republicado no seu blogue: "Acumulam-se os relatos e as histórias mais incríveis. Como a do casal que saltou de mãos dadas, para o vazio. O inferno deve ser isso: o mundo em redor a arder, uma hipótese de fuga, a procura desesperada de mais um minuto de vida. Escolher o suicídio e saltar para o vazio. Qualquer coisa deve ser melhor que o inferno puro."
Ali ao lado, Ivo saiu para a escola. "Aquilo vivido lá ganhou uma perspectiva... Se antes já era colonizado pela cultura americana, a partir dali não queria estar noutro sítio. Nunca tinha estado no meio de uma catástrofe, de uma guerra. Pensei: 'Eu, actor, acabou-se, isto não está para brincar aos actores. Tive acima de tudo vontade de ajudar. Uma coisa que me emocionou foi ver filas de gente à porta dos hospitais para doar sangue. Mas não podia sequer doar sangue, há uma série de coisas que tu como estrangeiro não podes fazer..." Em vez disso, nesse dia e nos seguintes, andou a carregar coisas. Um merceeiro queria recolher tudo o que tinha rua, por exemplo, e Ivo ajudava. E registava. "Fui para a rua, para o meio das pessoas, tinha de andar ali. Não conseguia telefonar para Portugal, não conseguia falar com ninguém, não havia telefones, ficou tudo cortado. Uma das coisas mais horríveis foi ver os médicos e enfermeiros à porta dos hospitais à espera de feridos e não vinha ninguém. E depois começaram a aparecer pessoas a pé, cobertas de pó, todas descontroladas..." Apareceram logo, também, as barreiras policiais. "Da rua 14 para baixo fecharam tudo, só se podia passar com cartão de residente e eu não tinha, foi complicado para sair e entrar em casa. Tinha de andar a tentar esgueirar-me entre os cordões de polícia. Era impossível aproximar-me das torres." Durante alguns dias, com a escola fechada, Ivo deambulou por uma cidade transfigurada. "Houve assim de repente uma espécie de regresso aos anos 60. Pessoas nos jardins a tocar viola, o Imagine do Lennon, posters de missing persons..." Uma atmosfera que define como de "força emocionada". "Era fácil passar na rua por uma pessoa que não conhecias de lado nenhum e abraçares-te a ela e chorares. United we stand, repetia-se por todo o lado. Eles são bons nisso, os americanos. De tantos filmes de heróis que viram têm o heroísmo inculcado, conseguem crescer para a ocasião." E ver o negócio. "Se não foi no próprio dia 11 foi logo no seguinte: começaram a aparecer vendedores por todo o lado com postais com as Twin Towers, a preços super inflacionados. Tipo, compre que já não há."
Em Washington Square, no hotel do mesmo nome, João Onofre, 25 anos, artista plástico, acorda naquele que é o dia mais importante da sua vida profissional: o da primeira exposição individual, ainda por cima numa galeria nova-iorquina. Está há uns dias na cidade, na noite anterior deitou-se muito tarde por causa da montagem das peças. É o telefonema da então namorada que lhe dá a notícia. Liga a TV. "Percebi que era ali ao lado. Levantei-me para sair e de repente oiço um barulho incrível, que estremeceu tudo. Parecia um bombardeamento, tudo trepidava. Eram caças a voar muito baixo. Na recepção do hotel ninguém sabia nada. Eram 10 e tal, na sexta avenidaestá tudo desgovernado. Carros para cima e para baixo, pessoas a correr, e aquela nuvem dantesca. Cheguei à galeria e do terraço tinha uma visão absolutamente sublime da catástrofe. Porque aquilo ao mesmo tempo era bonito, o cogumelo não parava de crescer, aquele marco da skyline de Nova Iorque de repente havia e não havia. Nunca lá tinha ido, estavam sempre a dizer-me que havia lá um bar muito divertido com uma vista fabulosa e nunca fui." Na galeria, sentiu o medo nas pessoas. E deu-se conta que, sem telefones e com as notícias daquele dia da imprensa americana "sem nada a ver", os jornais portugueses na net eram a melhor fonte de informação: "Lá nem se falava de mortos, aliás durante dias resistiram à contagem."Nem percebeu logo, confessa, que devia ser um atentado. "Quando cheguei à galeria tinha já caído o avião no Pentágono. Pensámos 'isto é estranho', mas só com o comunicado do Bush é que houve certeza." Medo? Por exemplo quando encontrou os GI na rua. " Um homem gigantesco, com um armamento gigantesco. Cena de BD: óculos escuros, sem simpatia nem cortesia com os cidadãos. A sensação de filme catástrofe: andar no meio da avenida a pé. Poucas lojas abertas, a corrida aos stocks. Já nem me lembro de onde jantei nessa noite, talvez em casa do galerista. Foi o resto da semana zombie... Só queria sair dali, mas não podia, os voos estavam cancelados, a ilha isolada." A exposição, claro, adiada. As galerias de Chelsea falaram umas com as outras e acertaram nova série de inaugurações, para dali a uma semana. Entretanto, assistir: "Não me aproximei das torres, aquilo estava tudo vedado e cheio de bombeiros. Mas no fim de semana seguinte aconteceu uma coisa horrorosa, que foi as pessoas virem ver aquilo. Havia engarrafamentos, com as autoridades a pedirem para ninguém ir. Transformou-se num espectáculo. E depois começou o mito do bombeiro herói e as bandeiras por todo o lado. Ao segundo ou terceiro dia massificou-se." Uma imagem muito forte, mais uma: "Os porta aviões parados no Hudson River - com aviões a jacto, helicópteros e um ar super ameaçador. A guerra importada para o centro da cidade. Faz-nos pensar que as coisas que se fazem no outro lado do mundo têm repercussões ao pé de nós - e que um americano cheio de cinza em cima no meio de uma catástrofe é exactamente igual a um iraquiano cheio de cinza em cima."
Cinza, pó, fumo. Quando Ivo finalmente conseguiu falar com Portugal, o vento mudou. "Foi uns quatro dias depois, o fumo virou para a ilha e ficaste no meio do fumo, que tinha um cheiro inexplicável. E aí as coisas complicaram-se em termos psicológicos e emocionais." Fechou-se em casa. "Fui à mercearia comprar bens essenciais: dois pacotes de massa e uma série de grades de cerveja. Era, imagine-se, o que eu na altura achei que era essencial. Viciei-me em TV. Ficava ali a beber e a fumar. Ao lado do sofá tinha um jarro daqueles de flores que enchi até acima de beatas. A insuportável Fox News a gritar 'War on America'. Telefonemas de amigos portugueses a dizer 'a América estava a pedi-las'. Caramba: posso ser contra muitas atitudes bélicas americanas mas ninguém está a pedir aquilo. O meu pai teve uma reacção muito forte. Mandou uma carta a um amigo americano a dizer 'Se for preciso vamos para a guerra'. Há ali uma zona emocional em que estás sedento de coisas más. E ao mesmo tempo começaram a surgir as teorias da conspiração. Deu-me uma náusea... Não tenho cabeça nem tempo suficiente para verificar todas as hipóteses."
Depois do alto e do baixo, a vida, outra vez. Foi possível ir à escola, voltar a descer até ao lugar onde fora o World Trade Center. "Os altares continuaram por muito mais tempo, eles têm tendência a mantê-los. E o Ground Zero ficou um buraco durante anos. Aproximei-me quando aquilo ficou organizado. Estava cheio de grades e de romarias. Depois, um ano depois, puseram lá aquelas luzes lindas que ainda hoje me emocionam. Devia ficar assim: a luz, a memória, indestrutível." Fast forward, nove anos depois: "É um tema que quando começo a falar dele e liga-me os botões todos, vem-te o estado de espírito... tenho de me travar. Não sei bem definir o que é. Há uma sensação de perda de qualquer coisa. Há uma tristeza, mas também uma coisa que é muito americana, siga, siga, para a frente, não pára. Eu não sei o que é humanidade, só se sabe o que é a humanidade quando estamos prestes a perdê-la. Mas quando vês aquela gente toda a querer ajudar, e viste também árabes a dizer 'não somos todos iguais'..."
"First chill, then stupor, then letting go". João Luís cita a poetisa americana Emily Dickinson, que usou como epígrafe num livro seu sobre a perda (a morte do pai), para falar do que sentiu naquele mês de Setembro há nove anos. "Primeiro o calafrio, depois o estupor, o torpor, depois a catarse. Acho que escrever foi isso, ajudou-me a expiar aquela dor. Entrei em processo de luto por aquelas pessoas." Com uma relação afectiva com Nova Iorque - o avô foi trabalhar como estivador num dos portos e foi aí que conseguiu o suporte financeiro para pôr o filho, pai de João Luís, a estudar medicina - sentiu o ataque como especialmente injusto: "Li nas listas de mortos nomes que eram quase de certeza de descendentes de portugueses. É uma cidade mística, inclusiva, que não merecia que lhe fizessem aquilo. E chorei, confesso. Talvez no final da primeira semana, há um momento em que os nova-iorquinos decidem numa noite sair todos à rua e acender velas. E lá fui eu. Não conhecia ninguém, estava no meio de simpáticos desconhecidos e houve um sentimento de comunhão... Fez-me lembrar aquele momento em 1999 em que Portugal inteiro parou por causa de Timor."
Nova iorquino desde 1998, a viver nos EUA desde 1989, o artista e designer gráfico Jorge Colombo, com 38 anos naquele dia, talvez já não se possa dizer um português no 11 de Setembro. Em vez de falar do que fez e por onde andou, prefere resumir as impressões e sentimentos. Fala da perda da inocência da cidade - e talvez da sua,dela cidadão, e da forma como se recompôs: "Bem, apesar de nem tudo ser perfeito - veja-se o caso corrente dos alarves de serviço a rejeitarem a mesquita." E fala da correspondência com outro momento fundamental da sua vida. "Nova Iorque logo após o 11 de Setembro recordou-me Lisboa logo após o 25 de Abril. Nem toda a gente teve ocasião de viver as duas coisas; eu vivi-as, e achei-as muito parecidas. Claro que num dos casos tratava-se de uma libertação, no outro de uma agressão. Em 1974 abraçavam-se soldados; em 2001 desenterravam-se migalhas de cadáveres. Mas o sentimento de estarmos todos juntos nisto, de sermos todos cidadãos comuns, em vez dum grupo de indivíduos isolados, era o mesmo. E as proliferação das bandeiras (antes de serem apropriadas pelo aparelho belicista) fazia-me pensar nos cravos de Abril: a mesmíssima forma abreviada de dizer que passámos todos pelo mesmo susto."
fonte: DN
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