Burla e fraude deixaram de ser crime
Com a entrada em vigor da nova reforma da lei penal, em 2007, é mais fácil escapar-se quando se engana o próximo
Em Portugal, já ninguém vai preso por burlar ou furtar se o autor dos crimes, caso seja apanhado, restitua os bens à vítima, ressarcindo--a de todos os prejuízos. De contrário, arrisca-se a cumprir prisão. Se o fizer, as autoridades fecham os olhos. Esta despenalização, que deixa muita gente do lado de fora das cadeias, é uma novidade da reforma penal de 2007 que tem passado quase desapercebida, e consta no artigo 206.º do Código Penal.
Ou seja, "nos casos dos crimes contra o património (quando se trata de dinheiro ou coisas ilicitamente subtraídas a alguém), o lesado passou a poder negociar com o criminoso. Havendo acordo, extingue-se o procedimento criminal. Pode ser discutível desde o ponto de vista ético, mas esse é o futuro. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, tudo se negoceia", explicou ao DN Costa Andrade, especialista em Direito Penal, na Universidade de Coimbra.
Opinião semelhante partilha Germano Marques da Silva, especialista em Direito Penal, na Universidade Católica: "Os crimes patrimoniais estão a ser desvalorizados. A tendência é para dispensar a responsabilização criminal desde que a vítima seja reparada e não se oponha ao arquivamento do processo."
Levanta-se, porém, a questão de saber se não estará o Direito a ser esvaziado do seu fundamento ético. "O Direito não tem um conteúdo nem moral nem ético. A sua função é resolver conflitos da sociedade", argumentou o professor Germano Marques da Silva. Conforme explicou, para a maior parte das vítimas de crimes patrimoniais, o mais importante é ver restituído o que perdeu. "Se a vítima se sentir compensada, não vale a pena perseguir criminalmente". Isto é, "não há necessidade de mandar gente para a cadeia quando a própria vítima já não reclama", adiantou, frisando: "O Direito Penal não tem uma função puramente repressiva."
Mas, a alteração à lei veio também beneficiar o poder de negociação dos ofendidos. No caso da burla qualificada, por exemplo, que é crime público (isto é, não é necessária queixa para que o Ministério Público abra inquérito), a vítima, mesmo que esse fosse o seu desejo, jamais poderia negociar com o criminoso. Ou seja, a queixa não poderia nunca ser retirada. Agora pode, explicou ainda o professor da Católica.
Antes de 2007, recorde-se, só as burlas simples podiam ser negociadas entre criminosos e vítimas, com vista à reparação e à extinção das penas. Depois da reforma, em vigor desde 15 de Setembro daquele ano, o princípio foi alargado a outros crimes patrimoniais, como o abuso de confiança, a burla agravada, o furto agravado, em suma, a todos os crimes que visem apenas ofendidos particulares, e desde que a vítima concorde, sem prejudicar terceiros.
Burla e furto são crimes tão antigos quanto a humanidade. Mas há uma nova criminalidade emergente que está a encher as prisões.
"Antigamente, quem ouvia falar em crimes ambientais, em crimes económicos, em tráfico de influências, em crimes de participação em negócio, em crimes de branqueamento de capitais?", questionou Marques da Silva, que explicou: "As sociedades não podem ter mais do que um determinado número de crimes e de criminosos. À medida que aumentam de um lado, têm de descriminalizar do outro." Ou seja, "é necessário haver uma hierarquia de valores", porque, ironizou, "alguém tem de ficar cá fora para trabalhar".
Mas, há também uma nova sensibilidade que defende penas mais duras para os criminosos. "As correntes pós-modernas querem penas mais graves, querem que o Direito entre por todo o lado", comentou o professor. Contudo, advertiu, "o Direito só deve intervir para assegurar a paz". E adiantou: "É fácil legislar e mandar toda a gente para a cadeia. Mais difícil é resolver os problemas sociais que são causa de criminalidade."
Também os crimes fiscais, note-se, são abrangidos pelo mesmo princípio que agora enforma as fraudes e as burlas.
"Ao abrigo da nova lei, os mais ricos sempre poderão comprar a liberdade", observou um operador judiciário, em declarações ao DN.
fonte: DN
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