segunda-feira, 21 de março de 2011

Guantánamo: Amado admitiu "necessidade logística do uso da base das Lajes"


Portugal só exigiu garantias sobre voos da CIA em 2009. E só para detidos que vieram para Portugal.

Era suposto o assunto não constar da agenda, mas um pequeno incidente tornou-o obrigatório. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, estava de viagem marcada daí a 15 dias para a primeira reunião com Hillary Clinton, a nova secretária de Estado da recém-eleita Administração Obama, e o encontro com o embaixador Thomas Stephenson em Lisboa servia de preparação para a ida à Casa Branca.

O incidente ocupa poucas linhas no telegrama confidencial que Stephenson escreveu a 21 de maio de 2009, no dia a seguir a ter estado com Amado. A 14 de maio, uma semana antes, o Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha negado autorização para um avião da força aérea americana aterrar na base militar das Lajes, onde os Estados Unidos operam desde a II Guerra Mundial.


Cara a cara com o embaixador americano, o ministro explicou-se: a recusa de aterragem do avião, "depois de ter entregue um detido argelino (de Guantánamo) a França, foi recomendada pelo diretor-geral de política externa, Nuno Brito, que, segundo Amado, estava preocupado com as consequências políticas da escala. Amado disse que assinou por baixo a recomendação de Brito, mas que entendia perfeitamente a necessidade logística de usar a base aérea das Lajes para fechar o centro de detenção de Guantánamo e prometeu total cooperação em voos futuros". No final do telegrama, o embaixador comentava: "Amado tem sido extraordinariamente prestável para com o Governo dos Estados Unidos durante todo o seu mandato, o que faz com que a recusa de 'clearance' da semana passada seja ainda mais surpreendente".

O argelino que ia a bordo, Lakhdar Boumediene, era o segundo suspeito de terrorismo detido na prisão americana em Cuba a ser repatriado na Europa já com Obama como presidente. Era uma "boa transferência", diferente de muitas outras que tinham acontecido antes, para Guantánamo e de Guantánamo.

A conversa entre o ministro e o diplomata americano levanta, no entanto, uma questão: se a "necessidade logística do uso da base das Lajes" existe para as "boas transferências", não existe também para as "más", as que dizem respeito ao rapto de cidadãos em países europeus e noutros lados do mundo depois do 11 de setembro de 2001? E se houve um processo individual de autorização diplomática para aquele voo, porque não houve para os outros anteriores?

A dúvida persiste, à porta fechada, nas conversas entre os diplomatas portugueses e americanos, em detalhes que vão saltando da correspondência enviada para Washington.

A 22 de fevereiro de 2008 (telegrama de 11 de março), um alto elemento do Departamento de Estado americano, Kurt Volker, informou o então diretor de política externa do MNE que o Governo de Londres ia anunciar nesse próprio dia que a Casa Branca admitia o trânsito de dois detidos por território britânico, contrariando desmentidos anteriores. "Os aliados dão informação quando a têm. Não questionamos os vossos pedidos", replicou o diplomata português.

Garantias colaterais

Em nenhum dos 722 telegramas da embaixada - que vão de 2006 a 2010 - há qualquer menção a pedidos de esclarecimento por parte do Governo português sobre a passagem dos voos da CIA pelo nosso território, apesar de a correspondência diplomática abranger o período em que havia uma intensa investigação a correr pelo Parlamento Europeu (entre 2006 e 2007): e apesar de haver relatórios sobre tudo e mais alguma coisa.

Apenas mais para o fim, num telegrama de 11 de janeiro de 2009, já com Obama no poder e com Portugal a discutir as condições para o repatriamento de detidos de Guantánamo, é que surge um pedido de garantias. Muito circunscrito. "Não aceitamos nenhum detido que 'tenha estado em Portugal'", diz à embaixada o diretor-adjunto da política externa do MNE. "Rui Macieira explicou que isso significava que o Governo português ia procurar garantias de que o detido não transitou por Portugal a caminho de Guantánamo".

E aqui outra questão se coloca: a Casa Branca já não tinha dado garantias a Portugal que não tinham passados presos por cá? Amado não tinha discutido isso com Condoleezza Rice, a secretária de Estado de Bush? Uma fonte não oficial do Palácio das Necessidades justifica: "As garantias nunca são demasiadas".

Por meias palavras, o tom dos telegramas sugere onde pode estar a verdade. "A não ser que a informação partilhada (por Ana Gomes e o jornalista Rui Costa Pinto) em privado com os procuradores seja significativamente mais substancial do que os acusadores têm dito publicamente, é difícil acreditar que esta fase preliminar levará a uma acusação", escrevia o embaixador Hoffman a 7 de fevereiro de 2007.

De acordo com uma lista detalhada que a NAV chegou a entregar à comissão do Parlamento Europeu que investigou os voos da CIA, num total de 94 voos civis e militares de e para Guantánamo ocorridos entre janeiro de 2002 e junho de 2006 com passagem pelo espaço aéreo dos Açores, houve 11 que envolveram escalas na base aérea das Lajes. Desses 11, cinco tinham como destino o centro de detenção em Cuba (enquanto os outros seis faziam o caminho inverso, com origem em Guantánamo).

Um desses voos, realizado a 20 de setembro de 2004 num avião militar C17, é apontado pela organização não-governamental Reprieve como tendo transportado 10 detidos para aquela prisão de alta segurança, incluindo o etíope Mohammed Binyam, que teria parado também no Porto em 2002, numa escala entre Rabat e Cabul.

Binyam, através da Reprieve, escreveu a José Sócrates em 2008 a pedir ajuda para o seu caso. O primeiro-ministro respondeu-lhe e remeteu o assunto para a Procuradoria-Geral da República (que chegou a enviar documentação para a defesa do detido). O etíope seria, depois disso, o primeiro repatriado da era Obama, antes do argelino que deu azo ao incidente com Amado. E seria um de 11 ex-presos a ser indemnizado pelo Reino Unido, para onde foi viver (e onde vivia antes), em quase um milhão de euros, para não levarem o caso a tribunal (os repatriados alegavam que os serviços secretos britânicos teriam participado na operação).

Confrontado pelo Expresso, o gabinete de Luís Amado não quis comentar os telegramas. "O ministro já disse tudo o que havia a dizer sobre o assunto", justificou uma fonte oficial do MNE. Para a eurodeputada socialista Ana Gomes, no entanto, devia ser exatamente ao contrário. "A Procuradoria-Geral da República devia ir agora consultar os arquivos do MNE e procurar as autorizações dadas aos voos para Guantánamo, o que não foi feito no processo-crime que foi arquivado". Para o rosto mais conhecido da investigação do Parlamento Europeu aos voos da CIA, está ainda tudo por dizer.

fonte: Expresso

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Veja aqui os telegramas publicados por The Guardian

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