domingo, 5 de dezembro de 2010

É um sonho para os historiadores, mas não vai revolucionar a história


Os Pentagon Papers revelaram que os EUA mentiram sobre a guerra

O historiador britânico Timothy Garton Ash chamou-lhe "um sonho para um historiador". Documentação oficial e classificada que leva entre 20 e 30 anos a estar acessível ao público, é revelada de um momento para o outro, em massa. "Um banquete de história do presente", qualifica Garton Ash num artigo no Guardian.

O "presente" dificilmente seria mais recente. Alguns dos documentos revelados pela WikiLeaks através de cinco publicações foram recolhidos em Fevereiro deste ano. Outros recuam a 1966. São mais de 251 mil documentos com informações confidenciais trocadas entre 274 embaixadas e o Departamento de Estado norte-americano.

"Que historiador não gostaria de ter acesso a este género de informação que governos e diplomatas trocam entre si?", lança Pedro Oliveira, especialista em história diplomática.

Mas há uma razão para a historiografia não se construir em cima do momento e ser preciso esperar duas ou três décadas para haver acesso aos arquivos. "Há assuntos cujo impacto se prolonga bem para além do período em que foram tratados", comenta o historiador, que considera "o recuo e o distanciamento temporal importantes". E também porque "os informadores podem ainda estar no activo".

De resto, salienta Pedro Oliveira, estas fugas "não vão revolucionar a história das relações internacionais".

O historiador Rui Tavares também está de acordo com a expressão de Garton Ash de que a fuga da WikiLeaks é "um sonho". Mas é a política, mais do que a História, que mais tem a ganhar com as revelações. "A influência historiográfica é grande, mas a influência política é enorme", diz ao PÚBLICO. "A relevância política ultrapassa a relevância histórica."

Entre as principais revelações já conhecidas, Tavares destaca o facto de diplomatas terem recebido instruções para recolherem dados sobre códigos de comunicação - que tem "dúvidas de que sejam legais" - sobre o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. "Se isto foi feito por diplomatas, o que não andarão a fazer os espiões?... Pergunto-me se não há limites para o que os diplomatas recolhem e enviam."

Esta fuga sem precedentes poderá não ser o suficiente para construir a "história do presente", de que fala Garton Ash, mas os historiadores têm aqui um papel. Pedro Oliveira explica: "Há a possibilidade de se analisar assuntos políticos contemporâneos de forma mais balizada", aproveitando o facto de os historiadores terem "mais informação acumulada".

"Os historiadores trabalhavam com as mesmas ferramentas de que todas as outras pessoas dispunham", adianta. "Isto não vai substituir o recurso aos arquivos daqui a 30 anos quando se escrever a história da guerra no Iraque. Estes documentos dão um vislumbre dos centros de decisão do Governo americano", mas não contam a história toda. "O perigo desta divulgação é ser unilateral. Parece vir de uma pessoa com a mira apontada para um dos lados, com uma agenda", adianta Oliveira, referindo-se a Julian Assange, fundador da WikiLeaks.

Rui Tavares também é da opinião de que o trabalho historiográfico "não mudará assim tanto como isso". Com os WikiLeaks, dá-se "uma reverberação do nível secreto sobre o nível público" no trabalho dos historiadores. "Geram-se novos documentos. Estudam-se os dois níveis."

Controlar a quantidade

Este caso não será absolutamente inédito e não chega recuar aos Pentagon Papers - as revelações feitas em 1971 por Daniel Ellsberg sobre o planeamento da guerra no Vietname, que incluíam, por exemplo, o facto de as previsões de baixas serem superiores às que foram tornadas públicas. "Não é novidade. No século XVIII havia muito isso, como "as memórias secretíssimas" da condessa Du Barry, amante de Luís XV", exemplifica Rui Tavares. "Algumas eram plausíveis, com todas as fofocas das cortes e de diplomatas de vários países, França, Áustria, Inglaterra."

Mas o que a WikiLeaks traz de novo é a quantidade e isso provoca um poderoso efeito. Trata-se de uma enorme massa de informação desclassificada ou publicada (já que "apenas" 15.652 entre eles tinham o carimbo "secret") de um segundo para o outro. Aos 250 mil documentos enviados para os jornais juntam-se os mais de 391 mil revelados em Outubro sobre a guerra e ocupação do Iraque, e outros 92 mil referentes ao Afeganistão, em Julho.Todos estes documentos existem porque foram reunidos. "A massa de informação deveria diminuir. Grande parte é irrelevante [mas há uma enorme quantidade], o que implica muita gente a trabalhar, o que significa que os dados estão menos seguros", denuncia Tavares. "Os serviços de espionagem estão a recolher tanta coisa e a crescer tanto que ninguém faz sentido disto."

Os EUA ficaram no centro da tempestade e, no mínimo, serão obrigado a repensar metodologias. Também pode ser uma oportunidade para reavaliarem as informações que têm pedido aos aliados da UE, realça Rui Tavares. "Temos tido muitas questões sobre a obtenção de dados" através do SWIFT (acordo para fornecer informações de instituições financeiras sobre europeus) e do PNR (Passanger Name Record, base de dados com o itinerário aéreo dos passageiros). "Tem que se discutir que dados se podem dar. Morada, telefone, email, preferências alimentares. Têm acesso a tudo... Eu sou historiador e se me perguntarem que dados quero sobre o período que estudo, eu digo "quero todos". Para um historiador, como para um investigador, tudo interessa."

fonte: Público

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