domingo, 5 de dezembro de 2010

Os famosos cinco jornais e a aventura da WikiLeaks


Uma revista e quatro jornais - foram agraciados com o exclusivo WikiLeaks. Puseram-se de acordo e publicaram. Explicando - mais ou menos - como e porquê. Tudo em nome do direito à informação.

"Estou fascinado pela vossa atitude autocomplacente, tipo 'somos os melhores' que vos permite justificar a publicação de documentos que o nosso governo considera deverem ser confidenciais, documentos classificados como secretos, e ao mesmo tempo criticar a WikiLeaks por tê-los roubado. De alguma forma, na vossa opinião, está OK usar propriedade roubada, só é mau roubá-la?"

A pergunta é de um leitor do New York Times e está, com muitas outras, numa secção criada pelo jornal na página online para responder a questões - muitas tão indignadas como esta - suscitadas pela publicação, a partir de 28 de Novembro, em sincronia com outros quatro magnífícos do jornalismo mundial (o jornal britânico The Guardian, o francês Le Monde, o espanhol El País e a revista alemã Der Spiegel) de telegramas secretos das embaixadas americanas disponibilizados pela WikiLeaks. Numa das respostas, assinadas pelos principais responsáveis do jornal, Bill Keller, o editor-executivo, faz um resumo da justificação do NYT para publicar o material: "O governo, claro, tem o direito, legal e de senso comum, de manter alguma informação secreta. Quando o governo falha esse objectivo, como sucedeu neste caso devido a uma falha de segurança que terá já sido corrigida, temos de decidir o que fazer com o resultado. As nossas alternativas eram: ignorar os documentos secretos, sabendo que de qualquer maneira iam ser lidos por muita gente, consultados ao calhas e provavelmente publicados sem que lhes fosse removida a informação perigosa, possivelmente para benefício de variadas 'agendas': ou estudá-los, colocá-los em contexto, e publicar artigos neles baseados, em conjunto com uma selecção criteriosa e editada dos próprios documentos. Escolhemos a segunda, evidentemente."

A justificação dos vários jornais não varia muito, sendo o facto de os telegramas irem ser tornados públicos de qualquer modo uma das suas linhas mestras, na meia desculpabilização que tanto escandaliza o leitor citado. O Le Monde, por exemplo, se admite que a intenção da WikiLeaks na divulgação "não é anódina" e que "mediu essa dimensão", considera que é seu dever, perante o risco da informação "cair no domínio público a qualquer momento", "analisá-la e colocá-la à disposição dos leitores". Um voto na "transparência", porém com "responsabilidade e discernimento, diferindo assim da estratégia da WikiLeaks" - referência ao facto de os cinco jornais terem, "em conjunto", "editado cuidadosamente" os telegramas, "retirando nomes e indícios que pudessem trazer risco para pessoas". E reconhecimento de que "não é por acaso que estas revelações emanam dos EUA, de certa maneira a sociedade mais transparente, e não da China ou da Rússia". Já a Der Spiegel assume que "o simples facto de poder olhar para uma série de acontecimentos políticos pelo mundo fora através dos olhos dos que neles participaram e assim enriquecer a nossa visão desse acontecimentos é geralmente o suficiente para colocar a transparência à frente de regulações nacionais de confidencialidade." E conclui, quase vitoriosamente: "Que provam estes milhares de documentos? Que os EUA têm o mundo pela trela? Que as embaixadas de Washington são centros de poder por si mesmas nos países onde estão sediadas? Tudo contado, provavelmente não. (...) No seu conjunto, os telegramas expõem as fraquezas da superpotência". Fraquezas que, proclama a Spiegel, a divulgação dos telegramas só pode adensar: "Nunca na história uma superpotência perdeu o controle sobre tão vasta quantidade de informação tão 'complicada'; nunca a confiança dos parceiros da América foi tão duramente abalada." Em coro, o El País certifica: "são dados de grande relevância que põem completamente a nu a política externa norte-americana" e "facilitam a compreensão por parte dos cidadãos das circunstâncias em que se desenvolve o lado obscuro das relações internacionais", "possibilitando aos leitores uma nova interpretação da realidade que os rodeia". E cuja divulgação, admite o diário espanhol, causa um enorme dano aos EUA que "será muito difícil reparar". Quanto ao The Guardian, muito mais sóbrio no editorial de arranque, virá no entanto a certificar, através do chefe de redacção Alan Rusbridger, "não ser função dos jornalistas poupar embaraços aos poderosos".

Em nenhum dos editoriais se responde ou sequer menciona a questão da escolha dos meios ou do critério que a ela terá presidido. Porquê estas publicações e não outras? Uma das características comuns entre os meios em causa, além do elevado prestígio de que gozam como publicações "de referência", é a de serem considerados de esquerda ou, mais precisamente, "centro-esquerda". São também todos, à excepção do NYT, da "Velha Europa" e representantes das quatro línguas "francas": alemão, inglês, francês e espanhol. Para além disso, que critério poderá ter havido? É o New York Times o único a abordar a questão, e por um bom motivo: é que não fez, desta vez, e ao contrário do que sucedera com as anteriores "fugas" protagonizadas pela WikiLeaks, parte dos escolhidos. Facto que era adiantado logo no editorial de 28 de Novembro, em que afirmava ter-lhe sido o material fornecido "por uma fonte que insiste no anonimato". Mas logo nesse dia a fonte denunciava-se: David Leigh, o editor-executivo do The Guardian para a área da investigação, confessava a um jornalista que tinha sido o jornal britânico a tomar a iniciativa de incluir o NYT no grupo. No seu espaço de perguntas dos leitores (que, no conjunto dos cinco, impressiona pela dimensão e qualidade - o Le Monde tem na sua página online o resultado de um "chat" entre a directora, Sylvie Kauffmann, o grande repórder Rémy Ourdan, e os leitores, mas com perguntas e respostas muito menos desenvolvidas e interessantes), o diário americano não só confirma que "a fonte anónima" foi o The Guardian como diz porque acha que tal sucedeu: "Deram-nos uma cópia do arquivo porque consideraram que era uma continuação da colaboração em anteriores revelações da WikiLeaks." Curiosamente, a explicação do The Guardian, veiculada por David Leigh, é bastante diferente: fê-lo para tentar evitar providências cautelares ("injuctions" para proibir a publicação) com que teria sido ameaçado pelo governo britânico. Do motivo pelo qual a publicação dos telegramas no NYT (quando já havia outros meios "escolhidos") serviria esse propósito não há rasto - o DN perguntou ao The Guardian e está à espera da resposta. Também a razão avançada pelo NYT para ter sido desta vez deixado "de fora" suscita algumas dúvidas. Diz o jornal: "Julian Assange, o líder da WikiLeaks, decidiu não nos dar o material, aparentemente porque estava ofendido com as nossas notícias sobre os seus problemas legais e organizacionais." Independentemente do que isso, a ser verdade, diz sobre a relação de Assange com a liberdade de imprensa e o seu apego à transparência, teremos de concluir que os outros jornais, os escolhidos, podem ter sido mais lenientes com Assange? Eis outra pergunta que o DN fez aos vários meios e de que aguarda a resposta. E que nos conduz a outra, relacionada com a terminologia usada para a relação entre as publicações e a WikiLeaks: "parceiros". Não é decerto uma palavra comum para descrever a relação entre uma fonte e um jornalista, e leva mesmo o NYT a, na resposta a um leitor, negar categoricamente a classificação: "WikiLeaks não é um parceiro mediático do Times. Não assinámos qualquer acordo, com a WikiLeaks ou seja quem for."

O NYT pode não ter assinado um acordo, mas fez um acordo, ou vários, com os outros jornais envolvidos e mesmo com a WikiLeaks. Um acordo que todos assumem, quer na selecção dos documentos quer na sua redacção. "A WikiLeaks não publicará senão resumos seleccionados pelos cinco jornais, após um trabalho jornalístico e de protecção dos indivíduos", certifica Sylvie Kauffmann no citado chat com os leitores. "Um só jornal não conseguiria tratar todos os documentos, não no detalhe a que nos propusemos. É também por esse motivo que decidimos juntar-nos, fazendo colaborar as nossas equipas de jornalistas." A colaboração incluiu, declara David Leigh, do The Guardian, coordenação de timings de publicação e "conversas entre todos para que não avançássemos com revelações antes dos outros". O que, além da valoração da importância/picante dos assuntos, explica que os cinco jornais tenham avançado com os mesmos temas ao mesmo tempo, como reconhece o Le Monde: "Os cinco jornais começaram, no domingo, por publicar dois assuntos principais - a diplomacia relacionada com a ameaça nuclear iraniana e as tarefas de espionagem de que os diplomatas americanos foram encarregados". As conversas, no entanto, não se limitaram aos "parceiros": incluíram também o governo americano. Não é claro se a iniciativa pertenceu unicamente ao NYT ou se resultou de uma decisão das cinco publicações; em todo o caso, foi o diário americano que desencadeou e conduziu o processo, o que nos pode levar a perguntar se as consultas que existiram com o Departamento de Estado de Obama teriam ocorrido se o Times não tivesse sido convidado pelo Guardian a ir a jogo. Na verdade, o jornal acabou por, segundo o seu próprio relato, constituir uma espécie de intermediário no processo: "O Times enviou à administração Obama os telegramas que planeava publicar e convidou-a a opor-se à publicação de qualquer informação que do ponto de vista oficial poderia ser prejudicial ao interesse nacional. Depois de lerem os telegramas, os responsáveis governamentais, após terem tornado claro que condenavam a publicação do material, sugeriram edições adicionais. O Times concordou com algumas, não com todas. O jornal avisou as outras publicações das objecções do governo americano e, por sugestão do Departamento de Estado, fê-las presentes à própria WikiLeaks."

Quando nos EUA, e não só, se sugere que Julian Assange e a WikiLeaks sejam alvo de um processo crime (violação de segredo de Estado, espionagem, alta traição, o que se arranjar), as cautelas e a atitude "responsável" do NYT e dos seus parceiros de aventura podem provar-se, também, uma boa estratégia de apaziguamento.

Sobre uma coisa não há dúvida: todo o processo é, usando as palavras de Sylvie Kaukkmman, "muito original". Talvez, como a maioria dos responsáveis editoriais envolvidos defende, se trate de uma batalha ganha na guerra pela transparência. Talvez, como muitos observadores - incluindo jornalistas - agoiram, possa resultar em mais opacidade (só para falar das consequências do ponto de vista da informação). Se a forma como os próprios jornais trabalharam a informação - no caso do El País, por exemplo, numa zona reservada que foi crismada como "mina chilena" e em computadores sem conexão com o exterior - servir de indício, o presságio não é bom. A não ser que seja apenas uma ironia.

fonte: DN

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Veja aqui os telegramas publicados por The Guardian

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