sábado, 9 de outubro de 2010

Unidos por um prego imaginário


Fosse vivo, John Lennon completaria hoje 70 anos. Ao DN Yoko Ono explica como se empenhou na campanha de reedições que agora chegam às lojas e recorda episódios de uma vida a dois, um deles à volta de um prego, numa exposição.

O que faria hoje John Lennon se ainda fosse vivo? 70 anos, certamente, como de resto manda o calendário de quem nasceu a 9 de Outubro de 1940 (num hospital de Liverpool). E, musicalmente? "Ele teria avançado rumo aos computadores", responde sem hesitar Yoko Ono, a viúva com quem o DN falou há algumas semanas num hotel no centro de Londres, onde apresentou não apenas a série de antologias e reedições de títulos da obra de Lennon que acabam de ser editadas, como partilhou memórias da sua vida a dois com um dos ícones maiores da história da música.

Conheceram-se ainda os Beatles viviam os seus melhores dias. "Foi uma hora antes da inauguração de uma exposição minha" em Londres, recorda Yoko Ono. "Tínhamos acabado de montar tudo e disse ao dono da galeria para não deixar entrar ninguém antes da inauguração. Mas ele apareceu-me com um tipo ao lado dele. Se calhar era um amigo próximo dele e não deveria dizer nada... Entraram, desceram à cave..." Decidiu segui-los e desceu também as escadas. "Estava a uns dois metros e o dono da galeria viu que eu ali estava e disse para o John: 'Olha, esta é a artista.'" O galerista não lhe disse então o nome do convidado... "Nem o faria, porque era um Beatle", reconhece Yoko. "Mas não reparei, mesmo que ele tivesse dito John Lennon", confessa. E então falaram pela primeira vez: "O John perguntou-me se poderia pregar um prego... E eu disse que, se pagasse cinco xelins, poderia. E isso era o que eu tinha pensado na noite anterior. Ninguém iria comprar o meu trabalho, assim tinha de encontrar uma forma de me ajustar financeiramente. E pensei que poderia cobrar sempre que alguém fizesse algo. Cinco xelins... Ele então respondeu se poderia pregar um prego imaginário... E pensei, este tipo está a jogar o meu jogo... A verdade é que ele não tinha dinheiro nenhum com ele", revela. Yoko reconhece que, na altura, estava longe de conhecer bem os Beatles. "Conhecia o nome Ringo, porque quer dizer maçã em japonês. Tinha lido algo sobre os Beatles num jornal quando ainda estava no Japão. Eram uns tipos com uns penteados estranhos e muito populares. Mais nada..."

Não muito tempo depois, Yoko era presença inse-parável ao lado de John, inclusivamente entre os restantes elementos dos Beatles. Contudo, e mesmo depois de terminadas as gravações de Abbey Road, no Verão de 1969, não pensava que o fim da banda seria inevitável tão pouco tempo depois. "Não pensei que fossem acabar. Pensei que continuariam... Talvez na sua mente ele pensasse que gostaria de se tornar mais livre", comenta.

Na verdade, John Lennon iniciou uma carreira a solo ainda os Beatles editavam discos. Mas desde logo ficava clara a expressão de uma personalidade mais política que o que alguma vez havia mostrado entre os fab four. "No momento em que ele se afirmou como um indivíduo, como um autor de canções, achou que seria correcto expressar-se à sua maneira e como o desejaria fazer. Nos Beatles ele tinha de ter em conta os outros. E acho que ele teve razão em fazer as coisas como fez", explica.

Hinos como Give Peace a Chance ou Xappy Xmas (War Is Over) são apenas alguns exemplos da manifestação de um espírito político cuja acção chegou inclusivamente a incomodar a administração Nixon em inícios dos anos 70. "Toda a gente o conhecia. Eu tinha ali um papel secundário. Mas penso que o facto de ele ter surgido daquela forma os terá tocado", confirma a artista.

A paz mundial estava na agenda do casal. E entre as manifestações que criaram para a tentar promover, contam-se os famosos bed-ins, nos quais John e Yoko, deitados nas suas camas de hotel, abriram as portas dos quartos, deixando entrar os jornalistas. Perante a ideia, certamente houve quem esperasse escândalo... "Ui, ficaram tão desapontados! ", graceja hoje Yoko Ono. "Acho que as pessoas se riram. Não esperávamos que se rissem", comenta. "Pensámos que sempre que fizéssemos algo em favor da paz mundial, tudo estaria diferente num ano. Que haveria paz dentro de um ano... E isso nunca aconteceu. Mas hoje sinto que 99 por cento das pessoas no mundo desejam a paz. E o um por cento que fica de fora está apenas a ser malandro. É preciso que se compreenda que somos um vastíssimo grupo de pessoas que o desejamos", alerta quase em forma de apelo. Mas, "como John o disse em tempos, esta não é a época para apenas um herói. Não posso apontar uma pessoa apenas que carregue o fardo deste incrivelmente complexo mundo. Ou seja, todos teremos de fazer qualquer coisa".

No momento em que passam 70 anos sobre o nascimento do músico (e no mesmo ano em que se assinalarão os 30 anos da sua morte), como acha Yoko que ele gostaria de ser recordado. O cantautor? O promotor da paz no mundo? O working class hero (herói da classe trabalhadora), como ele mesmo cantou? "Era tudo o que ele era, sim... Mas ele não pensava em nada disso quando trabalhava. Ele tinha apenas 40 anos", sublinha.

Nos últimos meses, a artista acompanhou pessoalmente a preparação de uma série de lançamentos que agora assinalam a data. "Estes são os 70 anos, a próxima data a assinalar deverão ser os 80" e, acrescenta, espera "ainda estar por cá". Mas sublinha que "este é o momento para fazer tudo isto pelo trabalho do John". Uma das razões pelas quais enfrentou este desafio foi mesmo "o facto de acreditar que o poder do seu espírito, a sua energia, ser algo de que precisamos agora". Yoko lembra que "as novas gerações, mas também nós, vivemos num clima de medo. E isso decorre do facto de tantas tragédias que aconteceram. Mas temos uma energia que podemos usar para mudar o mundo. E para isso o John é muito bom. Disse Gimmie Some Truth". É, explica, uma pequena observação "que traduz aquilo de que precisamos mais nestes tempos". A verdade é, diz ainda Yoko Ono, "um soro muito importante na vida. E está em falta. O John cantou sobre muitas coisas. Atreveu-se a dizer certas coisas... Arriscando mesmo a sua própria vida, de certa forma". De resto, Yoko Ono acredita que "ele teria sobrevivido se tivesse feito apenas canções bonitas. A sua atitude sobre outros assuntos fez com que algumas pessoas se irritassem".

A morte de Lennon, essa não a consegue explicar. Nem mesmo quando se lhe pergunta se leu o livro Agulha no Palheiro, de J. D. Salinger, que terá inspirado o assassino Mark Chapman, em busca de uma qualquer possível justificação. "Não faço ideia... Há pessoas que enlouquecem e matam a sua própria família... E sem razão, muitas vezes. Há muita loucura no mundo", remata.

Durante anos, Yoko Ono foi muitas vezes acusada de ter feito toda uma vida na sombra de Lennon. "Acusada de viver à sombra de um génio?", questiona. E responde: "Uma das razões pelas quais não acredito que assim seja é o facto de ter tido sempre confiança no meu trabalho. Mas havia ali uma árvore bela e uma sombra que me protegeu, e isso fez-me sentir bem."

O jornalista viajou a convite da EMI Music Portugal

fonte: DN

Sem comentários:

Enviar um comentário

Veja aqui os telegramas publicados por The Guardian

Veja aqui os telegramas publicados por The Guardian
Veja aqui os telegramas publicados por The Guardian